quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Passagem, 68 - não tem viver


A gente vive esperando o que vem
A gente espera vivendo o que tem
como tem, do jeito que tem
quando tem o que
viver do jeito que dá, do jeito que foi, do jeito que estou
não sei mais,
a gente vive querendo mais, até porque,
sem querer, é só existir,
não tem viver.

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Passagem, 67

Muitas vezes não entendo o que penso, só vou levando, da forma que dá. Chego em casa, faço um chá e tenho preguiça de refletir sobre o dia que passou. Os gatos bocejam e espreguiçam sem mais nem menos, uma coreografia maravilhosamente delicada e ensaiada. Observo de longe, mal respiro para não atrapalhar essa cena fantástica. Duas em cima da mesa, os outros dois na janela. Lá fora o tempo passa, correndo, ventando, sombreando. As buzinas frenéticas, as contas na bancada, a chaleira gritando, os vizinhos batendo porta, o celular infartando repetidamente... e os gatos? Os gatos ficam de olhos quase cerrados, com as pupilas como pequenos riscos pretos e as bocas abertas o máximo possível em um bocejo delicioso, indiferentes ao tempo. Sábios são os gatos, afinal, o "tempo" foi o criador do "sonho". A falta do tempo, a prisão do tempo, é a prisão do sonho. Ao fim desse chá de camomila... ganho mais observando os gatos. As estrelas são indiferentes à astronomia.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Passagem, 66


Eu esperava que dissesse para onde olhava... sei lá porque, talvez porque eu quisesse um daqueles clichês batidos de olharmos para o mesmo lugar, ao mesmo tempo, nem que fosse uma parte do céu. Não podia ser a lua, ainda é fim de tarde. Sabe? Aquela transição entre o sol fraco e início da noite, umas seis horas da tarde do segundo semestre do ano, na américa do sul. Deu pra pegar né? Não sei, são algumas coisas que lemos ou canções que ouvimos capazes de dar um click em algum sentimento esquecido ou deixado de lado. Pela causa que for, sendo bom, vou seguir. Tenho vivido assim e quer saber? É bem bom. As dificuldades que me imponho são um saco, respirar mais leve faz bem, os pulmões enfumaçados agradecem. Diga que é assim e pronto, sem mais delongas, alongas, nem nada. Esse negócio de solidão foi minha bandeira por muito tempo - ainda é - mas estou tentando mudar meu lema. Esse clichê, tão romântico e bem humorado como os filmes do Woody Allen, que estou tentando viver.

Em algum andar do prédio uma furadeira insistente está tentando trabalhar há algumas milhares de horas, já perdi a conta, na verdade, se ela parar vai ficar aquela sensação de que está faltando alguma coisa. E muitas coisas são assim, dá pra se acostumar com zumbidos, machucados e arranhões, temos uma resistência que não imaginamos... mas quer saber? É muito bom saber mudar a trilha sonora. Vai que dá pé?

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Passagem, 65


Passo por lugares desconhecidos e não percebo as voltas revoltosas do céu
ando
ando
ando
...
não chego a lugar algum.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Passagem, 64 - rochedo e só


Cheguei naquele alto do penhasco. Sim, você se lembra de lá, meses atrás, talvez até alguns anos. Subimos, de mãos dadas, se ajudando, eu escorreguei com meu tênis velho em umas pedras com musgo e você tentou me segurar. Caí sentado no chão, mas demos tanta risada! E ficamos por ali mesmo, contemplando aquele céu de abril, azulado avermelhado alaranjado rosado e todos os "ados" possíveis eu consigo associar àquele céu, àquele dia, àquele nós dois. Tudo estava bom, com pedra, musgo, caindo, sem dinheiro, sem perfume, tênis velho, sem gravata, sem mestrado, sem ser refinado. 

As ondas batiam forte contra as pedras e, desde criança, isso me fascinava. A força da água, a forma como sua cor muda do azul para o branco quando a onda quebra na areia, nos rochedos. Essa força inabalável me fascinava.

- Como você acha que eles vivem?
- Quem?
- Ora, os peixes, as lulas, as àguas vivas, os tubarões, nadando sem parar, sem parar, dia e noite. E à noite? Como deve ser? Já pensou topar com um tubarão no meio da noite? No mar escuro?
- Nossa, deve ser assustador. Se já tenho medo do escuro, imagina no fundo do mar? Só de pensar nessa solidão, já tenho vontade de correr.
- Correr da solidão? É, você faz bem. Ser só, de solidão, não tá com nada. Mas pensa bem, não ia estar sozinha! Tem os peixes, corais e, caramba, pensa nas baleias?! Já pensou que máximo ver uma cachalote? 
- Poxa, claro! Deve ser linda, mas pra mim, ainda não compensa essa solidão.

Não soube mais o que responder. Pra mim, estar só bastaria se fosse pra contemplar tantas belezas. Talvez eu estivesse certo. O mais provável é que estivesse errado. Você, mais uma vez, certeira sobre tudo. Deu sinais, gritou e tentou iluminar tudo. Eu, em meu centro torto, não vi, ou melhor, não quis ver. Sempre fui assim, um bom ouvinte, mas com uma ótima audição seletiva. 

Hoje volto nesse rochedo. As ondas batem da mesma forma e o cheiro do sal penetra fundo em minhas narinas, percorre meus vasos e distribui um pouco da energia do mar. Dessa vez não vim no fim de tarde. O pôr do sol é romântico demais pra mim hoje em dia. Vim cedo, o sol está nascendo e vem com uma brisa fria que faz minha nunca arrepiar. Antes arrepiava com seu cheiro, com o simples fato de te ver. Hoje é o vento que me toca. Vim pra ver o nascer do sol, talvez porque esteja precisando recomeçar; talvez porque precise nascer de novo, um novo eu, um recomeço, quem sabe. Não mudei muito. E sim, ainda admiro o mar, de outra forma. Ainda tenho minhas chatices, pessimismo e sonhos aventureiros. Ainda acredito em muitos impossíveis. 

Sobre a solidão? Ainda acho muito bom estar só, quanto mais se fosse pra ver uma bela cachalote nadando livre pelos oceanos! Como seria maravilhoso vislumbrar essa cena se eu, que questionava tanto seus medos, não tivesse tanto medo de mergulhar e ser engolido por um tubarão branco de dentes gigantescos. Hoje consigo rir disso, dessa cena, como nunca consegui. Sobre a solidão? Bem, queria que pudesse me ver. Apesar de não ter mudado tanto, dessa vez, trouxe meu cachorro pra olhar esse cenário tão bonito. E quer saber? Foi bem melhor não estar só. 

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Passagem, 63


Não pensava no tempo, sentia o gelo percorrer minhas pernas e fígado. As têmporas pulsavam enquanto bebia o café forte em copo descartável e queimavas a ponta da língua. As palavras corriam rápidas e não prestava atenção em nada específico, embora quisesse entender tudo que acontecia ao redor enquanto você falava comigo. Falar não é bem a palavra. Lia as letras difusas que, de alguma forma, se atraíam e formavam símbolos por um magnetismo fantástico que não entendia, não saberia ao menos dizer se, realmente, estavam ali. Em minha mente imagens se formavam, sensações, toques, gostos e cheiros se combinavam em cenas que me tiraram dali. Não havia outras pessoas, não havia café, não havia queimadura, não havia gelo, não havia copo e muito menos, não havia algo descartável. Não havia. Fazia tempo que não a via. 

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Passagem, 62


Eu observei as ruínas, senti o medo e os pavores, percebi seus destroços fugindo aos meus dedos magros e queimados. Eu olhei pela vidraça quebrada e senti seu suor salgado evaporando em minha direção. E como foi gostoso sentir esse sabor em meus lábios rachados e secos. Tudo tremia ao meu redor e o chão se abria. Não havia mais teto. Apenas eu em meio àquele deserto e sua lembrança desintegrando-se, segundo após segundo, em minha frente. Eu observei você sumir, sem adeus, acenos ou abraços de despedidas. Não houve despedida. O sol se explodia várias e várias vezes, em uma torrente de chamas e calor. Com um clarão avermelhado, tudo foi embora. O sol brilhava de uma forma que nunca imaginei e, enquanto encarava aquele grande deus amarelo fogo, minha visão se ofuscava em meio à luz branca. Não via mais nada. Cada célula de meu corpo queimava e, em meio a essa entrega, vi um pequeno ponto que era você, saudosa e nostálgica, me chamando pra passear. Eu sorri.