segunda-feira, 20 de abril de 2015

Passagem, 45 - a ponte, o rio, o barco e a água


Os longos dedos do sono envolviam seu fígado, pernas e olhos. Cada minuto sugava um esforço tremendo para impedir que o corpo desabasse daquela ponte alta e velha. O musgo entre as pedras era frio e deslizava em seu verde também velho e batido. Não conseguia ver ao longe, a neblina subia alto e disforme. Alguns carros passavam atrás e aquele cheiro de álcool e diesel chegavam, misturados, às suas narinas que já ardiam bastante por causa da fumaça de cigarro. Ele não esperava muito daquele dia, e talvez isso já fosse o erro, não tinha expectativas. Sua meta momentânea era voltar pra casa e dormir, por horas, por anos, um estado de hibernação que talvez pudesse alcançar e, cara, como seria bom. O que chamava sua atenção é que nunca foi de dormir muito, ao contrário, qualquer espirro fazia com que acordasse, nunca foi daqueles que dormiam à tarde ou acordava ao meio dia. Mas o tempo estava passando impiedoso. Não era mais um jovenzinho, a idade chegava, o corpo mudava, tinha sentimentos de séculos a frente, embora soubesse que não estivesse velho como pensava - mas as mudanças eram claras.

Aquele dia foi diferente. O corpo cansado, a mente esgotada; pareceu dormir de olhos abertos, sentindo a mistura de cheiros dos combustíveis e da água do rio, o tremor da ponte com o passar de caminhões e o barulho de um ou outro barco a motor que passavam lá embaixo. Quem sabe não mudava de profissão, arrumava um barco e começasse a pescar? Coisa pequena, nada demais, para ter um trocado ao final do mês para pagar umas bobagens; andar de chinelo, bermuda, camisa velha e um boné; como se tudo fosse simples assim.

Aquele dia sonhou de olhos abertos. Não sabia mais o que era e o que não era. Perdeu a noção do tempo e das necessidades, das vontades e dos desgostos. Apenas ficou ali, e aquela sua única "vontade", de voltar pra casa e hibernar feito um urso, não aconteceu, ao menos, não em sua casa. Daquele dia em diante, tornou-se parte do cenário, um elemento da obra, uma nota da sinfonia maravilhosa e majestosa que integrava a peça da qual era protagonista e passara a mero coadjuvante - e isso não era perda de prestígio, ao contrário: há tempos esperava ter a sensação de ser mais um em meio à multidão, sem posição de destaque, sem papéis a cumprir, apenas, um passo de cada vez, apenas um corpo em meio à ponte, ao rio, à neblina e à água.

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