quarta-feira, 21 de maio de 2014

Passagem, 23 - o morango e o tempo


O povo seguia triste pela estrada surrada naquela noite de lua clara. Alguns olhares se direcionavam aos céus, outros ao chão, mas todos transmitiam um ar pensativo. O clima estava pesado, eram cerca de 60 pessoas marchando em uníssono, havia sapatos, pés, chinelos, tênis e sandálias, mas o que importava é que todos seguiam na mesma direção. Ele era apenas uma criança e não entendia ao certo o que acontecia ali, ou porque aquelas pessoas caminhavam daquela forma, àquele horário, com aquelas roupas estranhas, escuras e taciturnas. Olhava de rabo de olho para a amiga Katarina, que ontem se tornara sua namorada, ela seguia com os olhos baixos, cabelos loiros soltos à altura dos ombros, saia preta e casaco. Ela andava de mãos dadas com a mãe, havia perdido o pai no ano anterior em um acidente à cavalo. Desde então, a rotina da garota era acordar às 6 da manhã, tomar uma xícara de leite, uma fatia de bolo com geleia de morango, ir para a plantação, colher morango por toda a manhã, levá-lo pra casa, almoçar com a mãe e as duas irmãs, sair para a escola, voltar para casa no fim da tarde e ajudar a fazer a geleia de morango que comeria no café da manhã do outro dia, a qual também era vendida na feira da cidade três vezes por semana, mas isso não vem ao caso agora. Na verdade, vem um pouco sim. Ela e o garoto se conheceram na feira, quando ele tentou roubar alguns morangos na barraquinha na qual a garota estava. Ela jogou uma vassoura nas pernas dele, ele caiu no chão e esfolou o joelho direito. Ela o ajudou a se levantar e limpou seu machucado. Ele a xingou. Ele comeu os morangos escondido enquanto ela cuidava de seu joelho. Ela deu um beliscão em seu braço. Os dois riram. Ela deu um beijo em sua bochecha. Ele esfregou o lugar, gritou "que nojo" e saiu correndo. Ela sabia que ele voltaria no outro dia de feira. E de fato, voltou.

Mas naquele dia, nada disso importava. Nenhum dos dois sabia ao certo o que estava acontecendo, a não ser a parte de que era uma "perda irreparável" e coisa do tipo. Ele ficara impressionado nas conversas que ouvia daquelas pessoas que marchavam rumo a sei lá onde. "Era um vagabundo e preguiçoso", "devia estar caindo de bêbado na hora", "sovina, mesquinho", "era o homem que sempre sonhei", "um grande homem" e coisas do tipo que não faziam sentido algum em sua cabeça. Na verdade, pensar nas pessoas não fazia muito sentido pra ele, claro, ainda era muito novo, mas toda vez que se aventurava a tentar entender seus pais, tios e qualquer outra pessoa, nada prestava, não conseguia, os adultos eram muito estúpidos. Porém, ela ele conseguia entender. Parecia enxergar claramente através daqueles olhos claros e enxergar o mais profundo de seus sonhos - embora ele não tivesse ideia de qual fosse. Mas, apesar disso, naquele noite ela estava diferente e ele não conseguia entender o porquê. Ele também estava triste, é claro, mas ela se quer conversava. Tentou chamá-la para correr dali, jogou uma pedrinha em suas costas e o que recebeu foi um olhar de repressão, umidecido por uma pequena lágrima que escorria. "Menina chata", pensou franzindo o cenho enquanto caminhava em frente, fingindo que não se importava com ela, com todas as pessoas que estavam ali e muito menos com o que estava acontecendo.

Era a perda. Ela não sabia explicar o porque de sua tristeza, também não sabia o que estava acontecendo, queria brincar com ele, jogar outra pedrinha, sair correndo dali e comer morangos. Mas de alguma forma, não conseguia. Pode ser que aquilo a lembrava de seu pai, da dor que sentira ao receber a notícia, ao ver o corpo no caixão no meio da sala na qual ele a carregava no colo. Pode ser o pavor ao lembrar do fantasma da morte que a encarara sem pudor algum e simplesmente levara seu pai, sem aviso, sem carta ou bilhete. Era o "não" que ele recebera de Katarina, que o mostrou que as coisas não são tão simples como desejamos. Era seu pai consolando sua mãe enquanto ela se debruçava sobre o caixão, soluçava, chorava e até desmaiou. Era a perda da estrutura, da força que ele entendia de sua família. Era a perda daquela facilidade da infância, das brincadeiras e correrias, dos doces e do pão, do primeiro beijo, do muro escalado e do salto pelado no rio.

A volta pra casa foi diferente, silêncio, sem pressa, passo depois de passo, o caminho que era de alguns metros pareceu ter sido percorrido por horas. Aos poucos, os dias passaram e a rotina se restabeleceu - afinal, a roda não para de girar em movimentos frenéticos. Não importava se era seu avô que morrera aquela tarde, não importava que sua mãe ficara desesperada e há uma semana não comia, dormia pouquíssimo e quando cochilava, gritava o nome de seu pai; não importava se ele havia conhecido seu primeiro amor e ganhado seu primeiro beijo, não importava se ele se sentia o moleque mais especial do mundo, não importava se teria jogo na escola no outro dia, não importava se haveria teatro na praça no outro fim de semana, não importava se sua vida havia sido virada de cabeça pra baixo de uma hora pra outra, não importava se estava extremamente assustado e se não tinha ideia real do que era a morte, não importava se em 15 dias seria seu aniversário e seu avô, seu maior amigo e grande ídolo não estaria ali, não importava se era tudo uma grande injustiça, pois o tempo continuava a passar.
E continua até hoje.

Um comentário:

  1. Maravilhoso. Das coisas irremediáveis, e até das que se pode remediar, a gente não escapa.

    ;)

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